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Aquém do Horizonte

Eduardo Veras

 

Há um poema de Rudyard Kipling em que o primeiro homem, depois de assistir ao primeiro pôr do sol, pega uma vara e risca uma linha no chão. Em seguida, o Diabo lhe chega por trás do ombro e comenta: "Ficou bonito, mas será que é arte?". O assunto da anedota é o quanto a crítica se compraz em nos perturbar as certezas, mas nem por isso o poema deixa de contemplar o próprio tema da criação: o sol não está mais no horizonte; resta a linha.

 

Imagine agora essa linha sobre uma folha de papel, folha pequena, meio ofício. Imagine que a linha não é reta, feito a do poema, mas é como aquela dos skylines urbanos, acompanhando o ritmo dos edifícios. Não precisa pensar em Nova Iorque, Porto Alegre já serve. Imagine agora que a linha define um único prédio, não um desses grandes e pretensiosos, que sua cidade tanto ama, mas um pequeno, já velho, três ou quatro andares. Imagine que, da linha para baixo, tudo se preenche minuciosamente; o lápis pastel se esfumaça em preto, cinza e branco, sugerindo planos, arestas, volumes. Vê-se apenas o topo do prediozinho: a caixa d’água, as paredes sujas, alguma basculante, calhas, telhas, canos. Para cima da linha, além do que seria o horizonte, apenas o branco do papel.

 

Agora imagine que a parte debaixo desse prédio desenhado é recortada pelo que seria o perfil de um segundo edifício, um pouco mais baixo, dois ou três andares, ou ainda uma casa. Porém, em vez de desenhar esse segundo edifício, imagine que, em seu lugar, tudo permanece em branco. É como se aquilo que (não) aconteceu acima da linha do horizonte se repetisse nessa porção inferior do papel: tudo em branco. O desenho mesmo, aquilo que foi riscado, ocupa apenas o meio da folha.

 

Talvez seja algo difícil de imaginar. Tentei descrever como enxergo os desenhos de Marcos Fioravante, jovem artista de apenas 23 anos. Encerrou-se faz pouco a exposição que ele apresentava na Galeria Gestual, em Porto Alegre. Boa parte de seus trabalhos ainda pode ser vista no acervo da casa, ao vivo, ou em reproduções no site.

 

Os pequenos desenhos em preto e branco, representando o topo de modestos edifícios, parecem sintetizar o próprio sentido do que é – e como funciona – um desenho: o que se risca, mas também o que se deixa em branco, o que o contorno define, mas também aquilo que nem se risca e que, ainda assim, consegue definir um contorno. O espaço intermediário entre dois planos, e também os planos. O desenho surge, ao mesmo tempo, além do horizonte e aquém dele. 

 

 

(Eduardo Veras é professor Adjunto do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, atua como crítico e historiador de arte. Texto disponível em: http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2013/05/eduardo-veras-aquem-do-horizonte-4153206.html )

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